De acordo com a ONU Mulheres, “Cultura do Estupro” é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens. Em outras
palavras, é a naturalização de atos e comportamentos machistas, sexistas e misóginos, por meio de músicas, filmes, publicidade, leis, dentre outras formas de expressão que estimulam a violência contra as mulheres.
“A cultura do estupro existe há muito tempo. A única coisa que vem modificando de uns anos pra cá é a mulher ter a possibilidade de denunciar e não ficar mais calada”, destaca a advogada e sócia do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), Iáris Ramalho Cortês.
Ela lembra que antigamente, mesmo quando o aborto era permitido em caso de estupro, na década de 1940, as mulheres nem chegavam a denunciar para evitar o constrangimento na delegacia. Campanhas na internet como #MeuMotoristaAbusador (lançada pela Clara Averbuck para denunciar um abuso que ela sofreu no transporte Uber) ou como o #metoo (eu também fui abusada), lançada pelas atrizes de Hollywod para denunciar o assédio sexual no cinema, são exemplos de como as vozes das mulheres estão se multiplicando.
Desmonte do suporte jurídico
Se por um lado as mulheres estão gritando cada vez mais alto, por outro, ainda existem delegacias despreparadas
para ouvir as denúncias. “Fui entregar uma cartilha de atendimento à mulher em uma delegacia de Extremoz (RN), mas o delegado me recebeu com as seguintes palavras: ‘Ah, mas eu nem vou ficar com isso. Aqui não tem isso de violência doméstica, as mulheres são muito comportadas’”, denunciou Iáris.
Na década de 1980 a criação de Delegacias Especiais de Atendimento ou Defesa das Mulheres, nos âmbitos
municipais e estaduais foi um grande avanço. “Era para ter pelo menos uma Casa da Mulher Brasileira em cada
estado, mas só temos em dois: Mato Grosso do Sul e no Paraná e no Distrito Federal”, ressalta Iáris. Para ela,
o desmonte de todas as políticas para mulheres conquistadas de 10 anos para cá está em curso.
Propostas para melhorar o sistema jurídico
“A gente não pode abrir mão da punição. Estupro está entre os piores dos crimes”, acredita Iáris. Ela explica que não defende castração nem justiçamento, mas sim medidas educativas, que possam fazer com que os homens de fato mudem para não cometerem as mesmas violências contra as mulheres. Outra questão é a formação dos operadores
do direito: “Eu me formei em 1977. Na época, a lei dizia que o homem era o chefe da sociedade conjugal. Eu achava tão normal. Mas por que é o homem? Por que não os dois? Se a gente não for alertada pelo professor, a gente acaba achando normal essas coisas que existem na legislação. Só fui despertar para isso com o feminismo, mas as faculdades de direito e os professores precisam discutir mais as questões de gênero”, conclui.
Você sabia? O Código Penal Imperial punia, embora com menor severidade, o estupro de prostituta. Assim, o condenado por estuprar uma “mulher honesta” cumpriria entre três e 12 anos de prisão. Já aquele que cometesse o mesmo crime contra uma prostituta teria uma pena de um mês a dois anos.
Entidades e movimentos sociais impedem desmonte da Casa Luciety
No final de 2017, a prefeita de Pelotas (RS) Paula Mascarenhas (PSDB) deu início ao desmonte e sucateamento da Rede Lilás de enfrentamento e combate à violência contra a mulher e na Casa Luciety, antes considerada modelo. Diversos problemas foram encontrados no abrigo para mulheres vítimas de violência: dos três banheiros, apenas um
estava em funcionamento; nenhum dos atendimentos de reabilitação para as mulheres previstos em lei (médico, jurídico, psicológico e social) estava sendo cumprido; ausência de agentes de segurança e a quebra do sigilo do endereço da casa.
Além disso, a Secretaria Municipal de Assistência Social (SAS) transferiu onze idosas para a Casa Luciety, que deveria atender casos específicos de mulheres em situação de risco de vida e violência. Segundo a SAS, esse desvio de finalidade seria por apenas 15 dias. As entidades e movimentos sociais reagiram e formaram uma comissão de mobilização para acompanhar a Casa Luciety e seus problemas até a retirada das idosas. O movimento feminista pelotense garantiu que a prefeitura cumprisse o prazo de quinze dias, devolvendo-a às mulheres de Pelotas no dia 27 de dezembro de 2017. A secretária de Governo, Clotilde Victoria, assumiu o compromisso da prefeitura não mais desviar a Casa Luciety de seu fim e de formar uma comissão permanente para discutir melhorias, qualificação profissional, atualização do regimento interno e garantir o pleno funcionamento desta casa de acolhida.
Campanha da CNTE
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) lançou no mês de novembro de 2017 a campanha “Saber amar é saber respeitar”, em favor do combate à violência na escola. O objetivo é trabalhar valores que inspirem o espaço e as práticas escolares, de forma a favorecer a convivência, o respeito, a inclusão das diferenças, a paz e a solidariedade.
O primeiro foco da campanha é o enfrentamento à violência contra a mulher. “Homem que é homem combate a
cultura do estupro” é a chamada do cartaz distribuído para escolas de todo país nos 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres. Além desse material, a CNTE também produziu uma cartilha voltada para professores, com dicas de como reconhecer a cultura de estupro e o que fazer para prevenir comportamentos que possam levar à violência contra a mulher. Saiba mais sobre a campanha: www.saberamar.com.br.
Garbage in, Garbage out: a segurança das mulheres na internet
Até os algoritmos do Google denunciam a cultura do estupro: ao digitar as palavras “morto pelo…” vamos ter como resultado “tráfico, PCC, montanha, estado islâmico, trem, meteoro… ”. Quando a busca é “morta pelo…”, encontramos “marido, namorado, ex, cunhado, pai, irmão”.
Na avaliação de Yasodara Córdova, pesquisadora da Digital Kennedy School, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, a Internet reflete essa violência contra a mulher de uma forma intensa e é preciso ter alguns cuidados. Leia a entrevista a seguir.
MÁTRIA: Na sua avaliação, esse resultado trazido pelos algoritmos do Google guardam alguma semelhança
com a realidade vivida pelas mulheres?
Yasodara Córdova: Esse resultado de busca faz sentido. Quando se fala em algoritmos, temos um jargão que exemplifica bem essa situação: “garbage in, garbage out” - ou seja quando vc faz a entrada de dados com determinado conteúdo, a saída vai refletir as informações naqueles dados. A informação coletada tende a refletir a realidade mesmo após o processamento de algoritmo, a não ser em casos muito específicos e muitas vezes intencionais, o que não é o caso.
M: Muitas feministas vêm denunciando a chamada “Cultura do estupro” - ou seja, comportamentos aparentemente inofensivos (piadas, concepções, ideias a respeito da mulher) mas que na prática vão autorizando uma série de violências contra a mulher. Na sua avaliação, essa cultura está presente na Internet? De que maneira?
Y: Bom, garbage in, garbage out. A internet é só um grande banco de dados interconectado. As pessoas fazem o input dessa cultura através dos dados que elas sobem pra essa nuvem, que acaba virando um espelho do que realmente pensamos. Nesse ponto, eu acho que a Internet é uma oportunidade única de nos entendermos como um coletivo, compreendermos quais são as peças que compõem nosso imaginário, nossa cultura, pra depois tentarmos mudar em um processo que é cíclico. A professora de Columbia Ansaf Salleb-Aouissi disse, no Simposio de AI & Inclusão realizado no Rio de Janeiro em 2017 que “os algoritmos podem ser vistos também como ferramentas para melhorar a sociedade”, e eu concordo com ela. Quando uma música que faz apologia ao estupro é retirada do Spotify por pressão nas redes, por exemplo, podemos identificar esse ciclo de correção - por mais que muitos considerem censura, a decisão da empresa refletiu uma ação que tem suas bases em compartilhamento de ideias feministas que condenam a propagação da cultura do estupro através da normalização da apologia. Está melhorando. Demora, mas acontece.
M: Hoje temos preocupações que no passado não tinham consequências tão devastadoras, a exemplo do “revenge porn” (homens que, sem autorização, publicam na internet fotos de suas companheiras em situações íntimas, por vingança) e dentre outros assédios. Quais são as principais vulnerabilidades para as mulheres na internet?
Y: Hoje temos ferramentas que não tínhamos no passado: câmeras digitais e redes sociais. Sempre se trocou fotos de mulher pelada, inclusive em veículos oficiais, e muitas vezes com o objetivo de prejudicar a imagem da mulher pela exposição. Revenge porn existe porque é considerado errado que uma mulher não se preserve, então é uma vingança expor a nudez, ou a mulher fazendo sexo, para humilhá-la. Tendo isso em vista, eu acho que as vulnerabilidades que existem não estão na Internet, mas no sistema judiciário, que não tem defensoria pública para atender a todos os casos que aparecem, retirando as imagens com rapidez da internet e punindo os culpados. Também é uma vulnerabilidade o fato de não existir uma lei que proteja os dados de adolescentes
ou crianças - que muitas vezes têm seus dados pessoais (endereço, nome real) expostos por sistemas fracos na segurança desses dados. Claro que o machismo deixa as mulheres mais vulneráveis à violência. Revenge porn é violência, então é só mais uma consequência do machismo que se reflete na Internet.
M: Na sua avaliação, a Justiça está preparada para lidar com esses casos de violência contra a mulher na internet?
Y: Está melhorando, mas está longe de funcionar. A velocidade de distribuição de uma foto constrangedora não é nem sequer comparável à velocidade de um processo se iniciar. O delegado, para você ter uma ideia, geralmente tem 90 dias para acabar uma investigação e levar uma denúncia pra frente. Em 90 dias as pessoas já fizeram até remix! O tempo que a pessoa que quer denunciar passa na fila da Defensoria Pública é suficiente para espalhar um vídeo para inúmeras pessoas pelo Whatsapp. A justiça tem que se modernizar, tem que estar disponível sem custas pra todas as camadas da população e focar menos em censurar e monitorar todos os cidadãos para pegar criminosos. Tem que ouvir a vítima de modo rápido, confirmar a veracidade das imagens. Para isso, a polícia precisa de mais tećnicos, menos armas. Mais inteligência, menos vigilância. Infelizmente, não é esse o caminho que estamos trilhando.
M: Como as mulheres podem se proteger?
Y: O primeiro passo é nunca deixar o homem filmar nem fotografar nada. Tenha certeza de que os arquivos estão sempre no seu celular, na sua máquina, e não na máquina do namorado, por mais que se tenha confiança. Outra coisa interessante a se fazer é usar sempre o Signal, aplicativo que não deixa que sejam tirado prints das fotos, guarda de maneira segura as imagens no seu celular, protegido sob senha, e você ainda pode apagar os conteúdos
do celular do cara também – lembrando que ele sempre pode reenviar. Também recomendo nunca jamais compartilhar senhas com namorados, trocando sempre o padrão de desbloqueio da tela e senhas para que eles não tenham acesso. Sempre fazer o Boletim de Ocorrência com o maior número de informações, como nomes das pessoas que compartilharam os vídeos ou fotos, por meio de printscreens e conversas gravadas, para agilizar o
trabalho da polícia.